30 de março de 2017

NEM TUDO É MAU


Saúdo-te da forma que costumas fazer quando me escreves: el salam aleicum. Keif el hal, ya abuna?

Encontro-me de novo em Cartum. Da última vez que aqui estive, em Dezembro passado, disse ao Provincial que não punha mais os pés aqui em Cartum. É que, mais uma das tantas vezes, fiquei um mês à espera da guia de marcha. E muitas graças a Deus que cheguei mesmo a tempo para a missa de Natal a Nyala. Mas esta é uma situação que se torna cada vez mais repetitiva.

A este respeito, que diria ou faria Comboni? E mais ainda, que faria ele face à tão precária situação das renovações dos vistos de residência no país em geral, não nos permitindo planear a vida da missão que fica atropelada/impedida descaradamente pela Security? E tudo isso sem apelo de defesa possível ou tábua de salvação a que nos possamos agarrar. Talvez fazer um sit-in ou outro tipo de protesto contra este tipo de injustiça? Porque não? Claro que este tipo de reacção da nossa parte teria consequências muito negativas para toda a igreja no Sudão e, muito certamente, traria a expulsão dos missionários estrangeiros…

Aquela minha vinda a Cartum em Dezembro passado tinha sido para uma visita urgente ao oftalmologista. E nestes dias, encontro-me de novo aqui em Cartum, não só por marcação de nova consulta de oftalmologia mas também para participar na Assembleia Provincial, além de outros afazeres de tipo procuradoria das missões.

Seria tudo tão fácil e bonito se pudesse estar de retorno a Nyala para a Semana Santa/Páscoa! Deus nos ouça!

Mas, por outra parte, nem tudo é mal. Pelo menos aqui em Cartum tenho um pouco de internet, melhor do que no Darfur, e posso então dar conta da tão longa lista de correio electrónico.

A falta de pessoal nesta província comboniana torna-se cada vez mais penoso e grave. E mais ainda depois da expulsão (sem alegação ou explicação alguma) do nosso confrade ugandês Dominique. O Paulo Aragão… foi-lhe prescrito um período de descanso obrigatório em Viseu. E ainda bem que assim foi. E, mais ainda, alegra-me(nos) saber que a sua cura está em bom progresso. El Hamdu lilah, graças a Deus!

O P. Asfaha, que está agora a caminho de Roma, passou-me o teu recado a respeito do meu meio de comunicação. 

Desculpa, mas, por agora, continuo só com o correio electrónico e o telemóvel. Não sou vocacionado para outros meios. Estou inscrito (por acaso e/ou por engano) no Facebook mas não o uso. Imagino que alguns confrades me deram os parabéns de aniversário no Facebook. Que me desculpem, pois eu não o abro. Aqui deixo o meu agradecimento a ti e outros que vi que me saudaram por correio electrónico no dia do meu aniversário e que pude ver aqui nestes dias em Cartum.

A não ser por razões graves de saúde, este ano não irei de férias porque o colega que chegou é novo em tudo. É que, para além da pastoral directa, o trabalho das (quatro) escolas é muito imperativo e exigente. Somos só dois na comunidade e sempre que um se ausenta – a Cartum ou El Obeid e só por razões inadiáveis – acontece facilmente que fica dependurado por semanas seguidas sem poder reentrar em Nyala.

Amigo Zé Vieira, desculpa, já vou na segunda página. Pois é, para quem não sabe sintetizar as medidas não têm medida.

E a Páscoa está à porta. Com ou sem amêndoas, a Ressurreição é sempre a meta. Tenhas com os confrades em Portugal um bom e frutuoso fim de Quaresma. A culminar com o grande Aleluia da Ressurreição.

Abraço.
Feliz Martins – missionário comboniano no Darfur, Sudão

28 de março de 2017

Sudão do Sul: UMA NOVA EXPERIÊNCIA




Ser refugiados é uma nova experiência que estamos a viver como comunidade. Saímos da missão de Lomin, in Kajo Keji,  a 6 de fevereiro para tratar dos documentos necessários para podermos fazer o nosso apostolado com as pessoas da nossa paróquia nos campos de refugiados onde se encontram no norte do Uganda.

Assim pensámos, mas a situação complicou-se tão depressa que em poucos dias a nossa zona se converteu num campo de batalha e já não pudemos regressar à nossa comunidade.

Foi doloroso não poder regressar à nossa missão e fazer parte dos refugiados, mas esta é a nossa situação e a de milhares de pessoas.

Neste mês e meio em que deixámos a comunidade de Lomin, temos rodado por algumas comunidades combonianas e casas de alojamento porque ainda não temos um lugar própria para estabelecer a comunidade.

Quando recebermos os documentos para viver no norte do Uganda vamos arrendar uma casa num lugar perto dos campos.

Os irmãos da nossa comunidade no princípio do mês arriscaram ir com alguns trabalhadores à nossa missão e o que encontraram foi destruição e solidão.

A nossa casa foi saqueada, as portas dos nossos quartos arrombadas. Os vândalos deixaram pelo chão livros e outras coisas sem valor, tudo atirado e espalhado nos quartos, corredores e quintal.

Na capela da casa, o cálice da missa estava por terra com alguns adornos.

Durante este tempo de espera pelos documentos não estivemos de braços cruzados. Visitámos alguns campos de refugiados para planearmos as nossas actividades no futuro e celebrámos a Eucaristia e os sacramentos.

Já temos um programa intenso para a Semana Santa. Como será? Não sabemos, mas nas celebrações que fizemos havia muitos fiéis.

Darei outras novidades depois da Páscoa.

Por isso, desde já UMA PÁSCOA FELIZ DA RESSURREIÇÃO DO SENHOR JESUS NOS VOSSOS CORAÇÕES E FAMÍLIAS.

NÃO VOS PREOCUPEIS SE NÃO VOS ESCREVO. POR CÁ NÃO É FÁCIL LIGAR-SE À INTERNET EM TODOS OS LUGARES E A TODAS AS HORAS, ESPECIALMENTE NO NORTE. QUANDO POSSO LER AS VOSSAS MENSAGENS ALEGRO-ME E SINTO-ME MUITO UNIDO A VOCÊS.

Para terminar, não se esqueçam que são parte da minha missão. Por isso não se esqueçam de ter-nos nas vossas orações e na vossa ajuda à nossa gente.
Abuna Jesús, missionário comboniano 

18 de março de 2017

MEU PAÍS AMARELO



O meu país é uma palete de cores, mas o meu país é amarelo.

Cruzando Portugal de norte a sul, do leste ao oeste através da primavera, verão, outono e inverno, o amarelo é a cor que mais diz «Presente!».

O amarelo dos narcisos, das mimosas e das austrálias e da erva canária que prenunciam a primavera; o amarelo dos tremoços bravos que enche de cor e perfume a grande planície alentejana; o amarelo dos grelos, do tojo e da carqueja, das maias; o amarelo dos girassóis que torcem o pescoço para seguir o astro-rei; o amarelo dos malmequeres e de outras tantas flores silvestres que vão marcando o passar das estações…

Portugal tem muitas cores mas quem manda é o amarelo que pinta os rios bordejados pelas mimosas – uma natureza que viva que encanta e deleita o olhar.

Amarelo do desespero? Amarelo dos peidos – como popularmente se diz em Cinfães?

O amarelo da luminosidade, do sol, do calor e da felicidade.

Para os japoneses é o amarelo da coragem; para os mexicanos é a cor da morte; para os judeus a cor da discriminação.

O amarelo é ambíguo? É como o meu país! É a cor do meu país! 

6 de março de 2017

DE DENTRO


Sou mais livre então na solidão do meu degredo.

A comunidade internacional acompanhou com inquietação o processo de 17 jovens activistas angolanos presos em Junho de 2015 enquanto liam e comentavam um livro sobre a mudança não-violenta do regime. Foram condenados em Março de 2016 a penas de prisão por rebelião e associação de malfeitores e libertados a 29 de Junho por ordem do Tribunal Supremo para aguardarem o desfecho do processo em liberdade.

O «raptivista» Luaty Beirão (n. 1981) foi a figura mais mediática do grupo, porque foi quem levou mais longe a greve de fome colectiva em protesto pela prisão preventiva prolongada: 36 dias.

Os acontecimentos foram seguidos de fora, através da comunicação social. Agora, há um relato a partir de dentro. Luaty publicou Sou Eu mais Livre, então – Diário de um preso político angolano, com as notas que escreveu para preencher a solidão do isolamento na prisão de Calomboloca, a uns 70 quilómetros de Luanda.

A obra reproduz dois dos três cadernos de apontamentos clandestinos que Luaty escreveu. O primeiro – um diário – cobre o período de 3 a 16 de Julho de 2015, as primeiras duas semanas de prisão e foi passado para o exterior. As autoridades prisionais confiscaram o segundo. O terceiro, breve, contém uma reflexão longa sobre o perdão, algumas notas e uma entrada de 24 de Agosto.

Os textos são um registo da banda sonora da vida em Calomboloca seguida da cela 21. Luaty estava em isolamento, sem luz natural. O que ele escreve é o que sente e vive. E o que ouve. Tinha um tempo de banhos de sol e recebia visitas em alguns dias. Restava a solidão.

O activista utilizou a leitura e escrita como espaço de liberdade em confinamento solitário. «Sou mais livre então na solidão do meu degredo do que tu que vives preso à escuridão do medo» – escreve numa rima.

Luaty escreveu muito, intensamente, sobre quase tudo: o dia-a-dia da prisão, os sonhos, as saudades, as lutas com as autoridades prisionais, listas de lembretes e livros, listas de víveres, esboços de letras, esquissos das paredes da cela e da prisão, a compaixão e respeito dos guardas e as arbitrariedades e caprichos da direcção, notas sobre leituras… «Posso ler e escrever... Sem dúvida dois dos maiores prazeres que um preso pode ter», escreve no primeiro parágrafo do diário.

O terceiro caderno tem um texto intitulado «Tratado sobre o perdão». Luaty passa em revista os anos de guerra, a corrupção endémica e institucionalizada, a «complexa teia de interesses» à volta da cúpula do poder.

«Parece-nos sensato que, ao invés de vingança e perseguições, se promova e cultive doravante a ideia do perdão e da amnistia como forma de pacificar os corações e se poder começar da estaca zero» – propõe.

Angola é «um barco enferrujado», mas a mudança necessária passa pelo perdão: «Perdoar é uma demonstração de coragem» porque «a violência é sempre uma estupidez» – diz.

Com uma condição: os infractores têm de se retractar. «É preciso saber o que se perdoa e isso pressupõe confissão», um acto «nobre e patriótico».

E conclui: «E para se atingir a verdadeira paz é preciso, necessário, essencial, purgar os rancores que carregamos nos nossos corações.»

Um roteiro possível para uma Angola democrática e de direito.

2 de março de 2017

DIOCESES PORTUGUESAS SOLIDÁRIAS COM O SUDÃO DO SUL


Quatro dioceses portuguesas expressaram solidariedade com os povos do Sudão do Sul ao decidir partilhar com eles o produto da renúncia quaresmal.

Os bispos de Aveiro, Santarém, Funchal e Portalegre-Castelo Branco anunciaram nas suas mensagens da quaresma que o produto da renúncia quaresmal todo ou em parte vai ser destinado à população do Sudão do Sul.

Os católicos são convidados a preparar a Páscoa através de sacrifícios pessoais em favor de terceiros.

«Para pôr em prática a misericórdia para com os mais vulneráveis vamos destinar a renúncia quaresmal à população do Sudão do Sul a viver uma situação aflitiva onde falta tudo: casas (tendas), comida, água, medicamentos e outras necessidades urgentes», escreveu D. Manuel Pelino, bispo de Santarém.

«Temos um canal seguro para chegar à realidade concreta: o Superior Provincial dos missionários combonianos que orienta a missão nesse país», acrescentou.

Dom António, Bispo de Aveiro, destinou metade da renúncia quaresmal para as crianças sul-sudanesas através do superior provincial dos combonianos no país mais jovem do mundo.

Dom António Carrilho, bispo do Funchal, e Dom Antonino Dias, prelado de Portalegre-Castelo Branco, também dividem o produto da solidariedade dos fiéis com a população do Sudão do Sul.

Os bispos responderam ao apelo que o Papa Francisco lançou a 22 de fevereiro em favor do «martirizado» Sudão do Sul.

«Neste momento, é mais necessário do que nunca o empenho de todos a não ficar somente nas declarações, mas a tornar concretas as ajudas alimentares e a permitir que possam chegar às populações sofredoras. Que o Senhor ampare esses nossos irmãos e os que atuam para ajudá-los», apelou o Papa argentino.

Mas há outros povos em necessidade que vão beneficiar da solidariedade quaresmal dos católicos portugueses: Angola e Iraque (Porto), crianças de São Salvador da Bahia-Brasil (Viana do Castelo), Síria (Beja e Guarda), Moçambique e Bolívia (Lamego), Timor-Leste (Forças Armadas e Segurança), Iraque (Guarda) e refugiados na Turquia (Viseu).

Outros destinatários da partilha da Quaresma são crianças em pobreza extrema (Angra), crianças e jovens desprotegidos (Coimbra), centro de apoio à vida (Vila Real), refugiados (Setúbal e Leiria), grávida em risco (Leiria) e militares e polícias em situações graves (Forças Armadas e Segurança).

Lisboa e Évora vão usar o dinheiro nos respectivos seminários.

O Papa Francisco escreve na mensagem para a Quaresma que a partilha da renúncia quaresmal promove a unidade da família humana, abrindo as portas ao frágil e ao pobre.

«Encorajo todos os fiéis a expressar esta renovação espiritual, inclusive participando nas Campanhas de Quaresma que muitos organismos eclesiais, em várias partes do mundo, promovem para fazer crescer a cultura do encontro na única família humana», sublinha o Papa.

É bonito ver a Igreja Portuguesa cada vez mais atenta e solidária com quem mais sofre aquém e além-fronteiras.