9 de junho de 2016

Sudão do Sul: VERDADE E JUSTIÇA


O presidente e o primeiro vice-presidente do Sudão do Sul publicaram um artigo de opinião num prestigiado jornal norte-americano a propor a troca de um tribunal internacional para julgar os crimes da guerra civil por uma comissão de verdade e reconciliação.

Salva Kiir Mayardit e Riek Machar Teny escreveram – ou alguém por eles – uma peça intitulada «Sudão do Sul precisa de verdade, não de julgamentos» publicada em The New York Times de 7 de junho para avisar que o tribunal híbrido internacional para crimes de guerra e contra a humanidade põe em perigo o frágil processo de paz em curso no país.

Os dois líderes envolveram-se numa guerra civil desde dezembro de 2013 e assinaram em agosto de 2015 um acordo de paz que prevê a criação de um tribunal híbrido internacional para julgar os criminosos do conflito armado caracterizado por atrocidades medonhas de ambas as partes.

A guerra civil matou mais de 50 mil pessoas, deslocou 2,3 milhões, destruiu três cidades e arruinou o desenvolvimento insípido do país mais jovem do mundo.

«Para trazer o Sudão do Sul à unidade só pode haver uma rota realmente garantida: um processo organizado de paz e reconciliação com o apoio internacional» modelado nos da África do Sul e da Irlanda do Norte, escrevem.

Kiir e Machar formaram um governo transitório de unidade nacional em finais de abril para executarem o acordo de paz assinado nove meses antes e prevêem que a justiça descarrile o processo político.

«Em contraste com a reconciliação, a justiça disciplinadora – mesmo sob a lei internacional – desestabilizaria esforços para unir a nossa nação mantendo vivos a raiva e o ódio entre os povos do Sudão do Sul», prognosticam.

O presidente Kiir e o primeiro vice-presidente Machar podem estar a tentar esquivar-se às responsabilidades criminais da guerra sem uma palavra de remorso.

«Sabemos que isso significa que alguns sul-sudaneses culpados de crimes podem ser incluídos no governo, e que nunca venham a enfrentar a justiça numa sala de tribunal. Contudo, há precedentes recentes que demonstram que esta via é a garantia mais certa da estabilidade», dizem.

O painel de especialistas sobre o Sudão do Sul escreveu em janeiro numa carta ao Conselho de Segurança da ONU que «Kiir e Machar mantêm responsabilidade de comado pelas respectivas forças. […] Há uma evidência clara e convincente de que a maioria dos atos de violência cometidos durante a guerra, incluindo ataques a civis e violações da lei internacional humanitária e da lei dos direitos humanos foram dirigidas ou cometidas com o conhecimento de indivíduos seniores ao mais alto nível do Governo e dentro da oposição».

O relatório do Secretário-Geral da ONU sobre crianças e conflitos armados, publicado a 15 de maio, dedica 10 parágrafos ao Sudão do Sul e denuncia os crimes cometidos pelo exército (mais) e pelas forças rebeldes (menos) contra as crianças sobretudo nos estados de Unidade e Nilo Superior.

O relatório documenta 1051 incidentes que afectaram 28 788 crianças, incluindo o recrutamento de quase 2600 menores, sobretudo pelas forças do governo, a morte de 480 crianças e a mutilação de 128; 430 foram violadas e 1596 sequestradas.

Esta lista de horrores contra a infância é uma pequena amostra do inferno em que as pessoas vivem no Sudão do Sul à mercê de quem tem armas: tropas, forças rebeldes e forças de segurança, civis e militares.

A Human Rights Watch qualificou a proposta presidencial de «audaciosa» e considera que a reivindicação de que a justiça desestabiliza esforços de unidade nacional «é ultrapassada e falsa», recordando que as experiências da Serra Leoa, Jugoslávia e Chile provam o contrário.

«Enquanto contar a verdade tem um papel importante nos países a emergir do conflito, é complementar e não uma alternativa a uma investigação justa por um tribunal competente e prisão para os culpados. A justiça não só honra as vítimas mais do que os abusadores como envia um sinal forte de que as atrocidades já não são toleradas», diz o despacho da ONG norte-americana.

As vítimas, mortas e vivas, clamam por justiça. O processo de verdade e reconciliação é necessário, mas a responsabilização criminal também. Não se pode ignorar o sangue dos mortos que clama por reconhecimento.

Não será que Kiir e Machar, líderes da guerra civil, estarão a tentar fugir ao banco dos réus? Será que têm medo de partilhar a sorte de Hissàne Habré, o ex-ditador chadiano que foi condenado por um tribunal especial à prisão perpétua por crimes contra a humanidade e de guerra?

Será que têm os dois timoneiros vontade política para implementar o processo de verdade e reconciliação ou é uma mera cortina de fumo para encobrir os criminosos de guerra?

O Acordo Global de Paz, conhecido localmente como CPA, assinado entre o Governo de Cartum e os rebeldes do sul em 2005 previa um processo global de reconciliação e sanação, mas nada aconteceu durante os oito anos do período interino que levou à independência do Sudão do Sul. Havia demasiados esqueletos nos armários de todos…

É necessário parar com a impunidade que recompensa os varões da guerra no país mais jovem do mundo.

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