28 de março de 2014

LEI DA MORDAÇA


A maioria dos países da África ocupa a cauda da tabela mundial da liberdade de informação, consequência de conflitos, terrorismo e totalitarismos. Um quadro deprimente.

A organização não governamental Repórteres Sem Fronteiras (RSF) publicou em Fevereiro o relatório anual sobre a liberdade de imprensa. A África sai muito mal no retrato: a Eritreia, que ocupa a 180.ª posição, é o país que apresenta a situação global mais grave no que respeita à liberdade de informação, seguida da Somália (176), Sudão (172), Jibuti (169), Guiné Equatorial (168) e Ruanda (162). O estado das coisas em 18 outros países é considerado difícil, 21 acusam problemas noticiáveis e só sete receberam uma classificação satisfatória, incluindo a África do Sul, Botsuana, Togo, Burkina Faso, Cabo Verde, Níger e Comores.

A Namíbia ocupa a posição 22 entre os países, com boa situação de liberdade de imprensa.

Quanto aos PALOP, os países africanos de língua oficial portuguesa, Cabo Verde é o mais bem classificado da lista da RSF, na posição 24, seguido de Moçambique (79) e Guiné-Bissau (86), todos entre os países com problemas. Angola ocupa a posição 124 entre os que apresentam uma situação difícil. Não encontrei São Tomé e Príncipe na lista de 2014.

A organização responsabiliza a guerra, o terrorismo e o autoritarismo pelo ambiente geralmente hostil à liberdade de informação na África.

Em Março, as autoridades egípcias tinham no banco dos réus duas dezenas de jornalistas, incluindo o australiano Peter Greste, repórter da Al Jazeera-English na região, por escreverem sobre a banida Irmandade Muçulmana. No Sudão do Sul, o ministro da Informação, Michael Makuei, ameaçou prender o repórter que entrevistou membros do SPLM na Oposição a negociar a paz com o Governo de Juba, em Adis-Abeba. Aliás, o Governo sul-sudanês anda a adiar a aprovação das três leis da informação desde 2008, que continuam às voltas entre os ministérios da tutela, o Parlamento e o gabinete do presidente.

Os movimentos terroristas dão-se mal com testemunhas incómodas. O grupo fundamentalista islâmico Al Shabaab matou dezoito jornalistas em 2012 e sete em 2013, fazendo da Somália o campo de morte para a classe.

O M23, durante os breves meses em que, em 1912, dominou o Kivu-Norte, na República Democrática do Congo, censurava os jornais, fechou meia dúzia de órgãos de comunicação social e pressionou os directores das rádios locais para ter uma cobertura favorável.

Por regiões, o Leste Africano é o mais hostil à liberdade de informação. A Eritreia baniu os meios de informação privados em 2001 e tem neste momento 28 jornalistas na prisão. O Sudão, a Somália, o Jibuti e o Ruanda são países com uma situação muito séria no que se refere à liberdade de informação. A Etiópia usa a lei antiterrorista para calar os profissionais que investigam a corrupção da classe dirigente. Sete estão presos. O Governo bloqueou setenta sítios de notícias e opinião na Internet.

O Governo do Quénia classificou de antipatriotas os jornalistas que faziam perguntas incómodas sobre as trapalhices das forças de segurança para conter o ataque, em Setembro, de meia dúzia de elementos do Al Shabaab ao Centro Comercial de Westgate, em Nairobi.

O Comité para a Protecção de Jornalistas nota com alarme a tendência de países relativamente democráticos como a Tanzânia, Zâmbia, Libéria, Quénia e África do Sul para obstruir a liberdade de informação. E adianta que a Nigéria tem o maior número de casos não resolvidos ou não punidos de mortes de jornalistas.

A Igreja Católica tem investido na informação em África. A CAMECO – Conselho Média Católico – enumera na sua página da Internet 172 estações de rádio católicas a emitir no continente. Há ainda algumas estações de TV, um lote de páginas web e um sem-número de publicações em papel a formar e informar através da África.

26 de março de 2014

MISSIONÁRIOS QUEREM REGRESSAR A LEER

Leer: Casa dos missionários depois da pilhagem

Os Missionários Combonianos querem regressar à missão de Leer, no Sudão do Sul, logo que a guerra termine e se o retorno for seguro.

A missão foi saqueada pelos locais e por forças rebeldes a 30 de Janeiro e a cidade queimada pelas tropas do Governo a 2 de Fevereiro.

O anúncio foi feito num relatório do Conselho Provincial dos Missionários Combonianos no Sudão do Sul sobre a situação corrente no país publicado a 25 de Março.

O texto diz que «as forças do governo estão a controlar a área, mas os rebeldes também estão presentes na região.»

Os habitantes de Leer ainda estão no mato com medo de regressar a casa.

«Têm necessidade de comida e medicamentos. A insegurança é ainda muito alta na região», o documento indica.

«A residência dos missionários e alguns edifícios da igreja têm que ser reconstruídos ou renovados. Os edifícios danificados estão completamente vazios depois da pilhagem», conclui o documento.

A luta pelo poder que começou em Juba a 15 de Dezembro de 2013 chegou a Leer um mês e meio depois.

Leer é a terra natal de Riek Machar Teny, o leader da oposição armada dentro do SPLM, o partido no poder no Sudão do Sul.

As quatro missionárias e cinco missionários combonianos da missão de Leer refugiaram-se nos matos quando as tropas do governo, lideradas por rebeldes sudaneses do Darfur, iniciaram o ataque à cidade para a conquistar aos rebeldes.

Os missionários viveram três semanas nos matos e pântanos das vizinhanças de Leer com outros refugiados até serem resgatados e transportados para Juba.

A missão e o Centro de Formação Profissional Daniel Comboni foram pilhadas pelos residentes e rebeldes antes da chegada das tropas do governo

A diocese de Lamego vai oferecer uma parte da renúncia quaresmal para a província comboniana do Sudão do Sul.

«Olhando para os nossos irmãos de longe, vamos destinar outra parte do esforço da nossa caridade para as missões dos Missionários Combonianos no Sudão do Sul, onde a guerra civil já provocou mais de 10.000 mortos e 700.000 deslocados, e as dificuldades dos nossos irmãos atingem o indescritível», Dom António Couto escreveu na sua Mensagem para a Quaresma.

20 de março de 2014

Sudão do Sul: COMBONIANOS REPENSAM MISSÃO

Os Missionários Combonianos da Província do Sudão do Sul estão reunidos em assembleia provincial em Juba de 17 a 22 de Março para repensar a missão no Sudão do Sul, hoje.

São 33 padres e irmãos mais três estudantes de teologia que trabalham em diversas missões de evangelização por todo o país juntamente com três convidados da província do Quénia.

O encontro importante estava programado para janeiro, mas teve que ser adiado para março devido aos conflitos que foram iniciados em Juba na metade de dezembro de 2013 e que se espalharam rapidamente por outras regiões. A insegurança não permitiu que três missionários de deslocassem de Old Fangak e Ayod para Juba.

A assembleia provincial acontece numa semana de eventos muito importantes para a igreja e sociedade sul-sudanesas. O Cardeal Peter Turkson, Presidente da Comissão Vaticana de Justiça e Paz, chegou a Juba para uma visita de solidariedade durante este tempo de guerra e violência. Ele trouxe mensagens de paz do Papa Francisco para o Sudão do Sul. O Cardeal Turkson vai se reunir com as lideranças da igreja, fieis e autoridades do governo.

Os Missionários Combonianos incluíram no seu programa um encontro com o Cardeal Turkson.

Também nesta semana as negociações de paz serão retomadas em Adis-Abeba, na Etiópia, na esperança de que os conflitos possam ser encerrados.

Atentos a estes eventos, os Missionários Combonianos procuram olhar para a sua missão e refletir sobre o caminho a seguir.

A missão de Leer foi atacada e saqueada e outras foram afectadas pela guerra civil que começou em 15 de Dezembro.

Os missionários também aderiram à campanha quaresmal de 40 dias de jejum e caridade pela justiça e paz e reconciliação no Sudão do Sul e são desafiados a repensar a missão no Sudão do Sul hoje.

P. Raimundo Rocha

19 de março de 2014

SONHAR DEUS


Mateus conta no seu evangelho que Deus falava com José, o carpinteiro de Nazaré, através de um anjo em sonhos. Este é um lugar-comum na Bíblia: Deus fala em sonhos desde Abimelech, um contemporâneo de Abraão (Génesis 20:3).

A Bíblia, o repositório do sonho de Deus, é um livro habitado por imensos sonhadores mais os respetivos sonhos com pesadelos à mistura. Um dicionário bíblico lista mais de 120 passagens – quase todas do Testamento Hebraico – sobre sonho, sonhador e sonhar.

António Gedeão escreveu no inspirado poema Pedra Filosofal: «Eles não sabem, nem sonham, / que o sonho comanda a vida, / que sempre que um homem sonha / o mundo pula e avança.»

Os sonhos são um alçapão de acesso ao nosso mundo mais profundo. Aquilo que sonhamos é o que queremos ou o que nos preocupa. Há terapias baseadas no estudo do conteúdo dos sonhos. Segismundo Freud, o pai da psicanálise, falava dos sonhos como expressão de desejos reprimidos.

Escrevi a palavra Sonhos no Google e saíram 16.4 milhões de ligações, incluindo receitas para cozinhar os sonhos doces de farinha fofa.

Mateus diz que os diálogos entre José, o artesão de Nazaré, e Deus deram-se através do sonho. Não porque José fosse um grande dorminhoco, mas porque era habitado por Deus.

Mateus conta-nos que a anunciação a José aconteceu num sonho durante a noite: «Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo. José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente. Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.” […] Despertando do sono, José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor, e recebeu sua esposa» (Mt 1: 18-21. 24).

José sonha o projeto de Deus, toma consciência e age de acordo.

Deus volta a falar-lhe em sonhos para o mandar para o exílio do Egito com a família e escapar à perseguição de Herodes (Mt 2: 13) e para regressar à Palestina depois da morte do perseguidor (Mt 2:19-20).

José «sonha» Deus durante o sono porque está cheio de Deus. Os sonhos falam dos lugares, dos acontecimentos e das pessoas que habitam a nossa profundidade mais recôndita.

Mateus diz que José é um homem justo. Ao jeito de Noé que «era um homem justo e perfeito, entre os homens do seu tempo, e andava sempre com Deus» (Génesis 6:9). José era um homem de Deus, porque como Yosef significa em hebraico Ele – Deus – acrescenta, multiplica.

Para o Papa Francisco, «José era um homem que sempre dava ouvidos à voz de Deus, profundamente sensível à sua vontade secreta, um homem atento às mensagens que lhe vinham do profundo do coração e do alto.»

Comboni tinha uma grande devoção ao «Patriarca São José», como lhe chamava. As suas cartas estão cheias de referências ao pai adotivo de Jesus, o santo ecónomo em quem depositava enorme confiança.

Destaco esta passagem de uma carta de 21 de Junho de 1878 ao Cardeal João Simioni a dar conta da grande seca e fome que afetava o Cordofão, no Sudão, e que fez milhares de mortes: «Nós lutamos com resignação e coragem no meio do flagelo da carestia. Quando na Itália o pão sobe até custar três vezes mais do que o preço normal, diz-se que há carestia. Aqui o pão e as coisas de primeira necessidade custam de oito a doze vezes mais que o normal. Por exemplo, ontem paguei o durra (o milho daqui) onze vezes mais caro do que o pagava em 1875. A água no Cordofão tem ainda um preço elevado. Não há memória de tanta miséria nestes lugares. Mas paciência! Nas barbas de S. José há milhares e milhões; e eu tenho-o assaltado de tal maneira e tenho-o feito acometer de tanta oração, que estou seguríssimo que a crítica situação actual da África Central se trocará dentro de não muito tempo em prosperidade. O tempo das desgraças passa, nós fazemo-nos velhos; mas S. José é sempre jovem, tem sempre bom coração e intenção recta e ama sempre o Seu Jesus e os interesses da sua glória. E a conversão da África Central representa um interesse grande e permanente para a glória de Jesus» (Escritos 5197).

A confiança em São José devolveu a esperança no caos da carestia e a certeza de que a situação ia melhorar.

Viva São José! Vivam todos os pais do mundo!

15 de março de 2014

REGENERAR AO JEITO DE COMBONI

Daniel Comboni nasceu há 183 anos, a 15 de Março de 1831, em Limone, nas margens do Lago Garda e do império austríaco, no seio de uma família pobre. O pai era feitor. Foi o único sobrevivente de oito irmãos, mas não teve medo de dar a vida por Jesus e pelos africanos, que O encarnavam. 

Deus tem os seus desígnios e fez com que Daniel atravessasse o majestoso Lago Garda e fosse estudar para Verona para a escola do Padre Nicolau Mazza, uma instituição que recebia crianças pobres dotadas. Lendo a história dos Mártires do Japão, aos 15 anos, decidiu ser missionário. Escutando com entusiasmo as descrições do trabalho do Padre Ângelo Vinco entre os Baris, no Sul do Sudão, decidiu ser missionário da África com quase 18 anos.

Começou a cumprir o sonho africano a 14 de Fevereiro de 1858 na missão de Santa Cruz, na margem esquerda do Nilo Branco, entre os Dincas-Kiche de Yirol-Leste. Mas depressa o sonho virou pesadelo: 40 dias depois da chegada o Padre Francisco (Checco) Oliboni morreu e a 15 de Janeiro de 1859 os missionários sobreviventes tiveram que abandonar a missão por problemas graves de saúde. 

Comboni voltou à Europa para digerir a sua experiência amarga. Não se resignou, antes preparou um plano para facilitar a evangelização e o desenvolvimento dos negros da África Central.

Este ano celebramos 150 anos daquilo que nasceu novo projecto para a conversão da África e logo se tornou no Plano para a Regeneração da África. 

No preâmbulo da quarta edição, Comboni escreve: «o católico, habituado a julgar as coisas com a luz que lhe vem do alto, olhou a África não através do miserável prisma dos interesses humanos, mas do puro raio da sua fé; e descobriu lá uma infinidade de irmãos pertencentes à mesma família, que têm nos Céus um pai comum, ainda curvados sob o jugo de Satanás e à beira do mais horrendo precipício. Então, levado pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado, para abraçar toda a família humana, sentiu que o seu coração palpitava mais fortemente; e uma força divina pareceu empurrá-lo para aquelas bárbaras terras, para apertar entre os seus braços e dar um ósculo de paz e de amor àqueles infelizes irmãos seus, sobre os quais pesa ainda o tremendo anátema de Cam» (Escritos 2742). 

O Plano de Comboni propõe uma descentralização da missão africana da Europa para as margens da África, para a regeneração da África através dos próprios africanos pela formação de professores, artesãos e agentes de pastoral (catequistas, padres e mulheres consagradas) que depois de frequentarem escolas à volta da África vão para o seu interior para se tornarem fermento de uma nova sociedade. Comboni advoga a promoção da mulher africana, «da qual, como entre nós, depende absolutamente a regeneração da grande família dos negros» (Escritos 2774) e a cooperação entre as diversas instituições religiosas para tornarem o plano operativo (Escritos 2790).

Fundou o Instituto Missionário para a Nigrícia em 1 de Junho de 1867 e as Pias Madres da Nigrícia a 1 de Janeiro de 1872 para cumprir o Plano, que está agora a ser plenamente concretizado através da Solidariedade com o Sudão do Sul, um grupo de mais de 200 institutos masculinos e femininos que tem à volta de 30 membros no terreno a formar professores, enfermeiros, agricultores e agentes de pastoral. 

Em Julho de 1870, prepara um pedido a favor dos negros da África Central para o Concílio Vaticano I incluir a evangelização do continente na agenda de trabalhos.

A 2 de Julho de 1877 é nomeado vigário da África Central sendo sagrado bispo a 12 de Agosto.

Morre em Cartum a 10 de Outubro de 1881, consumido pelas canseiras apostólicas e pelas febres tropicais.

Durante a sua canonização, há dez anos, o Papa João Paulo II apresentou Daniel Comboni como «modelo de entusiasmo e paixão apostólica», «insigne evangelizador e protector do continente negro» que «empregou os recursos da sua rica personalidade e de uma sólida espiritualidade para tornar conhecido e acolhido Cristo na África, continente que ele amava profundamente.»

A Igreja deu aos institutos combonianos uma parte do capítulo décimo do Evangelho segundo São João para celebrar a festa do seu pai e fundador. Comboni foi um pastor ao jeito de Jesus, o bom pastor que deu a vida pelas suas ovelhas: fez seus os sofrimentos do seu povo e lutou contra os esclavagistas, planeou a regeneração da África, correu a Europa de lés a lés para angariar apoios e operários para a missão africana, combateu a fome, a doença, a miséria e o isolamento da África Central e lançou as bases da regeneração da África através dos africanos. Viveu e morreu pela África, com a África na mente, no coração, na língua e na pena. 

Hoje diz-nos: a cooperação continua a ser a pedra angular da missão, uma cooperação que envolve tudo e todos. E encoraja-nos para não nos assustarmos com as histórias de desgraça e miséria que nos entram casa adentro através dos jornais, rádio, televisão e internet. Antes, que contemplemos o mundo que nos rodeia através do olhar misericordioso de Deus, «à luz que vem do alto» levados «pelo ímpeto daquela caridade que se acendeu com divina chama aos pés do Gólgota e, saída do lado do Crucificado» abraçando com o coração toda a família humana.

12 de março de 2014

QUANDO EVANGELIZADORES SÃO EVANGELIZADOS


Os Missionários Combonianos foram acolhidos entre o povo Nuer, no Sudão do Sul, em 1996. Desde então eles assumiram os cuidados pastorais da Paróquia São José Operário na missão de Leer, a qual pertence à Diocese de Malakal e corresponde a uma extensa área territorial de quatro municípios. As pessoas que vivem na missão são todas da tribo Nuer, uma etnia do grupo nilótico, também conhecidos como pastoralistas ou semi-nômades. O povo Nuer forma o segundo maior grupo étnico do Sudão do Sul e a sua maioria ainda não foi evangelizda. A missão de Leer, portanto, é uma missão de primeira evangelização, muito desafiadora e estressante, mas também é uma missão muito bonita e cativante.

AVENTURA DRAMÁTICA Eu cheguei à missão de Leer em julho de 2010. Foi lá que iniciei minha aventura missionária na África. Uma aventura é normalmente algo vivido com muita animação e diversão, mas também pode ser uma situação a ser vivida de forma muito dramática. Recentemente eu vivi uma dessas experiências. Uma aventura daquelas que a gente nunca esquece. Estava acompanhado de um grupo de Missionários Combonianos, Irmãs Missionárias Combonianas e mais algumas outras pessoas. A estória aconteceu na missão de Leer, estado de Unity, numa região rica em petróleo que fica no Sudão do Sul, a nação mais jovem do mundo. Eu gostaria de partilhar essa estória com vocês.

Somos cinco Missionários Combonianos que trabalham na missãode Leer: Pe. Francesco Chemello (Itália), Pe. Raimundo Rocha (Brasil), Pe. Yacob Solomon (Etiópia), Ir. Nicola Bortoli (Itália) e Ir. Peter Fafa (Togo). As Irmãs Missionárias Combonianas que atuam em Leer são a Ir. Agata Catone (Itália), Ir. Carmirta Júlia (Equador), Ir. Laura Perina (Itália) e Ir. Lorena Morales (Costa Rica). Em janeiro de 2014 o seminarista maior Comboniano, Ketema Dagne (Etiópia) e o Pe. Michael Barton (USA) chegaram à missão para aprender a língua Nuer. Também os padres Stephen, Joseph Makuey e Ernest Adwok, da Diocese de Malakal (Paróquias de Mayom e Rubkona), foram acolhidos na missão e com eles um casal e uma senhora com sua filha de 17 meses. Chegaram a Leer fungindo da guerra. Todos viveríamos a mesma aventura e provação.

CONFLITO Antes, porém, aconteceram alguns fatos que eventualmente fizeram suscitar uma guerra civil no país. O Sudão do Sul tem apenas dois anos e meio de independência e passa por um processo de construção de nação. A independência aconteceu no dia 9 de julho de 2011 depois de uma longa guerra civil de 21 anos. O país está entre um dos mais pobres do mundo e há tempos vinha enfrentando crises políticas e financeiras que muito ameaçavam sua estabilidade. Em julho de 2013 o presidente Salva Kiir depôs o vice presidente, Dr. Riek Machar. Ambos são membros do mesmo partido político (SPLM). O presidente é da etnia Dinka e o vice deposto pertence à etnia Nuer. As duas formam as maiores tribos dentre os mais de 60 grupos étnicos do país.

Tensões foram aumentando dentro do governo e a crise no partido foi se agravando. Infelizmente os membros partidários não foram capazes de resolver suas diferenças através do diálogo e no dia 15 de dezembro de 2013 uma onda de violência se instalou em Juba, a capital do país. Tudo começou com uma briga armada entre a guarda presidencial, em que muitos são Dinkas, e membros do exército da etnia Nuer. O exército foi dividido entre forças leais ao governo e forças leais ao ex-vice presidente. Por causa disso, dezenas de milhares de pessoas viriam a ser mortas, quase um milhão forçadas a deixar suas casas e se refugiar no mato, bases da ONU ou em outros países. Muita destruição e saques viriam a acontecer em boa parte do país.

Os conflitos começaram em Juba, mas rapidamente se espalharam por outras regiões e agora se concentram nos três estados produtores de petróleo: Jonglei, Upper Nile e Unity. Isso não é por acaso. Existem muitos intereses políticos e económicos por trás dessa briga de poder. O petróleo é a principal fonte que alimenta a economia do país, uma riqueza natural na qual muitos querem colocar suas mãos ganaciosas. Os conflitos até certo ponto ganharam uma dimensão étnica envolvendo as duas maiores tribos: Dinka e Nuer. Porém, as causas dos conflitos são na verdade políticas e motivadas por ganância e interesse de indíviduos ou grupos.

Na noite de 15 de dezembro e nos dias que se seguiram, centenas de inocentes civis foram mortos em Juba. Ao que tudo indica muita gente foi atacada e morta com base na sua origem étnica. Mulheres foram violentadas, casas saqueadas e queimadas. Dezenas de milhares, sendo a maioria membros da etnia Nuer, procuraram refúgio nas bases da ONU, tanto em Juba quanto em todas as outras zonas atingidas pelos conflitos. Outros milhares fugiram para os países vizinhos. A maioria dos estrangeiros que estavam no país foi evacuada para seus países de origem. A crise política e briga de poder que aconteceu em Juba fez gerar um guerra que espalhou muito medo, violência, morte, destruição e incertezas pelo país. 

LEER Apesar dessa situação apavorante em Juba e outras partes, a vida seguia relativamente normal na missão de Leer e nós continuamos com a nossa rotina. Porém, quando se aproximou o natal, aumentaram as tensões e medo de que os conflitos chegariam a Leer. No começo de janeiro 2014 a cidade de Leer acolheu milhares de pessoas que fugiam dos conflitos em Bentiu e região norte do estado de Unity. Leer é rodeada por pântanos e isolada, mas acessível desde Bentiu. Nosso grupo de missionários começou a ficar preocupado com a situação. No meio de medos e tensões resolvemos ficar na missão como um sinal de esperança e solidariedade para com o nosso povo.

Até esse momento nossa aventura missionária em Leer assemelhava-se a qualquer outra vivida por missionários engajados com uma missão de primeira evangelização entre povos pastoralistas. O povo estava feliz com nossa presença missionária. Muito trabalho tinha sido feito na missão, sobretudo no campo da formação de lideranças, sacramentos e promoção humana (educação). Algumas estruturas em material permanente tinham sido construídas e muitas lideranças receberam treino para serem catequistas e evangelizadores. A igreja local estava crescendo e tínhamos muitos planos para o futuro. Porém, um novo e doloroso capítulo na história da missão de Leer seria aberto pela guerra.

FUGA O ambiente ficava cada vez mais tenso e perigoso. A insegurança era imensa. A comida ia ficando mais escaça. Isso fez com que o povo fugisse para o mato. Resolvemos fazer o mesmo. Dois fatores foram determinantes para a nossa fuga. Primeiro, a pressão recebida por parte de soldados rebeldes e civis armados. Os rebeldes controlavam a cidade e insistentemente queriam os carros da missão. Queriam também saquear toda a missão. No dia 29 de janeiro cinco grupos de soldados (alguns bêbados) e alguns civis vieram à nossa residência exigindo os carros. Conseguimos a muito custo convencê-los de não levar os carros da igreja. Depois de receber água e comida partiram. A essa altura todas as ONGs que atuam em Leer tinham evacuado seus funcionários e suas dependências tinham sido completamente saqueadas. Por causa dessa situação de insegurança achamos que não daria mais para resistir a tanta pressão.
  
O segundo fator para a fuga foi uma informação que recebemos na noite do dia 29 de janeiro dizendo que combatentes Darfurianos (da região de Darfur, no Sudão) estariam na linha de frente das forças do governo que avançavam. A maioria são mulçumanos e não respeitariam ninguém da igreja. Eles atacariam, destruiriam e até matariam quem encontrasse. Sentimo-nos inseguros e vulneráveis, sem proteção alguma. Essa situação nos obrigou a deixar a missão. Foi uma decisão muito dura e dolorida. Partimos e a viagem pelo mato foi também difícil. Era terreno de areia e trechos com lama. Finalmente chegamos ao nosso destino, uma comunidade distante com uma capela. A comunidade cristã nos recebeu bem e ali nos sentimos aliviados e ‘seguros’. O pior, porém, ainda estava por vir.

MILAGRE Algumas horas após a nossa partida, a missão foi saqueada. A expectativa do nosso grupo era que as forças do governo avançassem rumo a Leer pela estrada principal. Porém, uma hora após nossa chegada ao local os rebeldes Darfurianos, vindos pelo mato com as tropas do governo, atacaram o nosso grupo. Eles já chegaram atirando em nós. Podíamos ouvir o som das balas acima de nossas cabeças enquanto corríamos para o mato. O grupo espalhou-se e perdemos contatos uns com os outros. Cada um de nós pensava que os demais haviam sido mortos. Graças a Deus ninguém morreu. Aos poucos conseguimos nos juntar já ao anoitecer. A exaustão e o medo eram grandes. Não tínhamos dúvidas, se estávamos vivos foi porque Deus fez uma milagre naquele dia. Estávamos com medo, mas não em desespero. Sentíamos fortemente a presença de Deus.
 
Dois dos três carros da missão, carregados de comida e outros bens, foram levados. O terceiro carro foi incendiado porque os guerrilheiros não conseguiram por o carro a trabalhar sem a chave. Perdemos quase tudo. Ficamos sem poder fazer nada e vulneráveis. Não tínhamos nada em que confiar, a não ser em Deus. Passamos a noite no terreiro de uma casa próxima cujos moradores também correram para escapar dos tiros. Dormimos no chão frio sob o ataque dos mosquitos e sem comida. No dia seguinte logo de manhã cedo partimos dali guiados por dois catequistas e algumas mulheres até chegarmos a uma localidade distante e aparentemente segura. Não demorou muito para outras famílias em fuga se juntarem a nós. Formamos uma pequena comunidade, todos partilhando do mesmo destino e aprendemos lições enormes de solidariedade. Comida, remédios, roupas, lençóis e mosquiteiros eram partilhados entre os que mais precisavam. Ao fim de cada dia uma outra partilha: a Santa Eucaristia era celebrada. As orações e o espírito de comunidade mantinham viva a nossa esperança.

INCOMUNICADOS A falta de comunicação foi outro desafio muito grande nessa aventura. Sem telefone, ninguém sabia se ainda estávamos vivos ou qual seria nossa localização. Depois de doze dias e de uma longa procura, um telefone via satélite foi encontrado e contatos foram feitos com os Missionários Combonianos de Juba. A partir desse momento sentimo-nos mais tranquilos e as esperanças de sermos resgatados aumentaram. Porém, ainda levariam alguns dias até isso acontecer. Por medo ninguém se arriscava a ir à cidade até que uma senhora se prontificou a levar uma carta ao Comissário de Leer para saber se a cidade era segura o suficiente para o nosso grupo se descolar até lá e ficar na residência da missão. Recebemos uma resposta positiva e imediatamente nos pusemos em marcha. Após quatro horas de caminhada, chegamos a um acampamento militar onde ficamos aquele dia e noite. No dia seguinte conseguimos chegar a Leer e cinco dias depois fomos evacuados para Juba em aeronaves da missão de paz das Nações Unidas.

AMADOS E PROTEGIDOS Enquanto vivíamos essa aventura sentimos muito medo, mas também sentimo-nos tão amados e protegidos por Deus. A solidariedade de muitas pessoas simples foi imensa. Além disso, ao fazermos a escolha para ficar com o povo naquela situação sentimos que estávamos fazendo a coisa certa como filhos e filhas de São Daniel Comboni. Comboni fez causa comum com os mais pobres e abandonados dessa terra e incasavelmente trabalhou para e com eles. Por fim doou sua vida. Nossa presença na missão durante esse tempo de guerra não era somente para proteger a igreja e propriedades da missão. Era também para ser sinal de esperança para o povo e ser voz aos que não tem voz, para dizer ao mundo o que estava acontecendo ao povo durante a guerra através do serviço de internet da missão, o único meio de comunicação que tínhamos funcionando.

ABRAÇO CORDIAL A vida missionária é sempre bonita e apaixonante, mas também é uma aventura cheia de desafios, especialmente em situações de guerra. Não existe lugar para ‘romantismo’. É missão dura. O missionário tem que abraçar a missão com um coração bravo e amoroso. Na missão procuramos responder ao chamado de Deus para nos fazermos solidários com os mais pobres e esquecidos do mundo. Abrimos nossos corações e nossa missão para acolher a todos, independentemente da tribo, raça, religião e afiliação política. A vida deve vir em primeiro lugar. Nessa aventura partilhamos das dores, alegrias e esperanças do povo. Às vezes é preciso arriscar nossas vidas para que o povo viva.  

Na missão vivemos situações em que somos levados a sofrer e a enfrentar momentos muito difíceis, mas o fazemos com alegria porque fazemos o que devem fazer os discípulos de Jesus de Nazaré. Somos evangelizadores, mas o povo também nos evangelizou durante essa aventura missionária. Eles partilharam de sua pouca comida para nos manter vivos. Arriscaram suas vidas para salvar a nossa. Fizemo-nos pobres com os pobres e para os pobres, mas fomos enriquecidos com tantos sinais lindos do Reino de Deus os quais foram revelados nas atitudes e simplicidades do povo de Deus. A missão é como uma escola onde se ensina e se aprende, se evangeliza e se é evangelizado.

VOLTAR Apesar de tudo o que passámos ainda temos a esperaça de poder voltar à missão de Leer. No momento a situação não nos permite. O povo continua refugiado no mato e pântanos. A insegurança é grande. Um dia voltaremos ao nosso povo e continuaremos com o árduo, porém, necessário trabalho de evangelização. Não perdemos a motivação missionária. Sempre haverá riscos, mas Deus está conosco. Não temeremos porque é Deus quem nos chama e envia para promover vida e paz onde há morte e violência. Precisamos discernir com sabedoria quando será o momento mais apropriado para recomeçar. A pessoa de Jesus Cristo precisa ser conhecida, amada e seguida por todos. O evangelho não pode parar. O povo clama e não queremos nos fazer de surdos a seus clamores, especialmente aos dos mais pobres.   

Pe. Raimundo Rocha, Missionário Comboniano no Sudão do Sul

11 de março de 2014

DESERTOS EM FLOR

Desertos cheios de árvores carregadas de frutos foram das vistas mais espantosas que encontrei nas minhas andanças por aí.

Ligamos a palavra deserto a lugar morto, mas as vastidões áridas contêm um potencial enorme de vida se tiverem humidade. Em Israel e no Egipto, foi a rega gota-a-gota que veio resgatar a aridez e cumprir a profecia dos desertos que vão alegrar-se e florescer (Isaías 35: 12).

Esta imagem veio-me à mente enquanto rezava a primeira leitura de hoje: «Assim como a chuva e a neve descem do céu, e não voltam mais para lá, senão depois de empapar a terra, de a fecundar e fazer germinar, para que dê semente ao semeador e pão para comer, o mesmo sucede à palavra que sai da minha boca: não voltará para mim vazia, sem ter realizado a minha vontade e sem cumprir a sua missão» (Isaías 55:10-11).

O nosso coração pode parecer um deserto seco, árido mas está cheio de promessa à espera da humidade fecundadora, a Palavra de Deus. É essa a sua missão: fecundar-nos como fecundou o seio virgem de Maria. E Deus garante que ela cumpre a sua missão antes de voltar para Ele. Se nós deixarmos e abrirmos a nossa vida ao orvalho vitalizador do Espírito do Senhor a que também chamamos graça ou amor. Alguém traduziu «ó cheia de graça» (Lucas 1. 28) por «cheio do amor do amado.»

Daí que seja importante criar pequenos nichos quotidianos de silêncio para acolher a Palavra que «fecunda e faz germinar» a bondade imensa que Deus semeou no nosso coração. Sim, porque se a bondade do Senhor enche a terra inteira (Salmo 33:5), também enche o meu coração que é parte da terra. O desafio da Quaresma é deixar a bondade de Deus – e a sua beleza – germinar no nosso coração.

Uma sugestão: se queres rezar usando a internet – e porque não? – há um sítio muito interessante que te pode ajudar: chama-se Passo a rezar e oferece-te uma gravação áudio de 12 minutos com a Palavra de Deus, e a palavra e música dos homens que podes baixar para o MP3. Desfruta!

9 de março de 2014

EUISMO

©JVieira

Fazemos uma sociedade centrada no eu. O Papa Francisco chama-lhe «individualismo pós-moderno e globalizado» que «favorece um estilo de vida que debilita o desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os vínculos familiares» («A Alegria do Evangelho», 67). Eu chamo-lhe euismo, a ideologia que relativiza tudo ao eu e faz de mim o centro da minha vida e da vida toda.

Eu é fragmento de Deus, é Deus sem princípio nem fim, o que resta de um projecto de vida sem Deus, ateu. Queremos ser os deuses de nós mesmos e descobrimos que «estamos nus» (Genesis 3:7). Ideologias que tentaram impor um projecto social, económico e cultural sem Deus provocaram – e estão a provocar – crimes medonhos contra a humanidade.

O Evangelho de hoje apresenta um roteiro concreto para ultrapassar a tentação do euismo. Mateus 4:1-11 conta-nos as tentações de Jesus: «Então, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome. O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se Tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães.» Respondeu-lhe Jesus: «Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.» Então, o diabo conduziu-o à cidade santa e, colocando-o sobre o pináculo do templo, disse-lhe: «Se Tu és o Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito: Dará a teu respeito ordens aos seus anjos; eles suster-te-ão nas suas mãos para que os teus pés não se firam nalguma pedra.» Disse-lhe Jesus: «Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus!» Em seguida, o diabo conduziu-o a um monte muito alto e, mostrando-lhe todos os reinos do mundo com a sua glória, disse-lhe: «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.» 10 Respondeu-lhe Jesus: «Vai-te, Satanás, pois está escrito: Ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a Ele prestarás culto.»11 Então, o diabo deixou-o e chegaram os anjos e serviram-no.»

As três tentações de Jesus são as nossas tentações:

1. Usar os dons que Deus nos deu para proveito próprio em vez de servir o bem comum: transformar as pedras em que tropeçamos no pão que mata as muitas fomes que me esganam o coração e as entranhas;

2. Usar Deus como «escada» para a glória pessoal, para o prestígio a todo o custo, a atenção reclamada;

3. Negociar a dignidade de filhas e por filhos de Deus um naco de poder ou pelo poder todo.

Jesus encontrou resposta aos diversos apelos que dividiam no seu coração na palavra de Deus. É no regresso a Deus que reconstruimos a nossa identidade, recuperamos o eu original que é parte de Deus.

Jesus foi tentado pelo diabo. A palavra grega «diabolos» tem a raiz em fragmentar, entornar. O diabo fragmenta, divide, quebra a realidade harmoniosa que Deus quis e fez («Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa» – Genesis 1:31 – ou muito bela).

O remédio para o euismo é o regresso à comunhão. Walter Hugo Mãe escreve em «A Desumanização» que «o inferno não são os outros […]. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam , e não exactamente em ti.»

Concordo!

6 de março de 2014

Brasil: RONDÓNIA METE ÁGUA


Olá amigos(as), tudo bem?

Eu e o outro P. Jorge acabámos de chegar nesta madrugada da área ribeirinha de Calama. Ficámos lá estes dias fazendo causa comum com os povos que aos poucos estão perdendo as suas casas que vão entrando dentro das águas. De muitas comunidades já só se vêem os telhados! Os animais mortos nas águas, ou alguns ainda vivos em cima de troncos pedindo socorro! Uma só família em São Carlos perdeu mais de 100 cabeças de boi! É triste de ver.

A nossa viagem começou às 10h30 da manhã depois de rezarmos de manhã cedo a missa das cinzas com o povo. Chegámos a Porto Velho às 3 da madrugada já de quinta-feira. Ao longo da viagem só se via sofrimento. Gente carregando e trazendo para Balsas, que estão ainda construindo, os seus móveis, fogão, geladeira...

Estou vendo como fazer para ir amanhã com o P. Jorge Benavides a São Carlos, pois a estrada já está fechada devido a uma ponte que sumiu! Vou tentar ir até Aliança e depois ver se alguém nos vem pegar numa voadeira e nos leve até à casa paroquial que inaugurámos em Janeiro. Segundo as pessoas nos dizem, toda a área de São Carlos já está dentro de água. Vamos tentar salvar as coisas carregando-as para a torre da igreja que é alta!

Pensávamos sair esta noite lá em São Carlos quando o barco vinha de Calama e passava lá em frente mas as pessoas acharam que seria muito perigoso e imprudente pois já era de noite e lá não tem mais nem energia nem água faz já 15 dias. Segundo falam as pessoas, as cobras e jacarés estão por todo o lado que vem do lago famoso do Cuniã que já ligou com o Rio Madeira.

O P. Jorge Benavides teve pouca sorte pois chegou num momento em que o povo está desesperado. As pessoas choram por todo o lado! E as águas ainda vão subir até à semana da Páscoa, devido à lua-cheia que vem depois de 21 de Março, que este ano, para piorar, é muito tarde!

A nós pouco resta fazer a não ser rezar e tentar consolar estas pessoas com a nossa presença.

Um abraço fraterno a todos.

Contamos com as vossas orações,

Padre Jorge Brites – Missionário Comboniano em Porto Velho

4 de março de 2014

Sudão do Sul: 50 ANOS DA EXPULSÃO




Março de 1964: 
Partida do Sudão 
e chegada à Itália

As Missionárias e Missionários Combonianos estão a celebrar 50 anos da expulsão do Sudão, o parto doloroso da Igreja local e de novos espaços de missão para os dois institutos.

O Conselho de Ministros Sudanês decretou a expulsão de todos os missionários católicos e protestantes a operar no Sudão do Sul a 27 de Fevereiro de 1964, acusando-os de abuso da hospitalidade e ingerência nos assuntos internos do país.

Até 9 de Março, 154 combonianas, 104 combonianos e 13 missionários de Mill Hill e algumas dezenas de protestantes tiveram que abandonar a missão e o país.

Um bispo, 25 padres diocesanos e três missionários combonianos locais ficaram com a responsabilidade de levar para a frente 58 missões católicas. Havia ainda cinco congregações locais: três femininas e duas masculinas, de irmãos.

A expulsão não foi o golpe mortal na Igreja que florescia no Sul do Sudão, como pretendia o Governo islamizador de Cartum. Marcou, isso sim, o nascimento de uma hierarquia sul-sudanesa, a abertura das etnias dinca e nuer ao Evangelho e o início da Igreja Católica no norte do Sudão.

O Sudão do Sul estava em guerra contra Cartum desde Agosto de 1955, ainda antes da independência que aconteceu a 1 de Janeiro de 1956, contra a arabização e islamização da área.

Com a guerra a ganhar força, depois da expulsão dos missionários, muitos sulistas buscaram refúgio em Cartum e aí se encontraram com agentes pastorais católicos que continuavam a trabalhar nos campos da educação e da saúde no ambiente muçulmano, sobretudo membros das etnias dinca e nuer que antes se tinham mantido fechados à Boa-Nova de Jesus.

Uma dúzia de anos mais tarde, os bispos locais já eram cinco.

Com a expulsão, as duas congregações combonianas viram-se com 258 membros no «desemprego» e abriram-se a outras latitudes na África, Médio Oriente e América Latina, incluindo Chade, República Centro-Africana, Etiópia, Leste do Uganda e Quénia.

As Missionárias Combonianas estabeleceram-se em Portugal em finais de 1964. Antes passavam por cá só para aprenderem a língua a caminho de Moçambique.

Os missionários também renovaram a metodologia de trabalho e intensificaram a preparação de agentes de pastoral locais, leigos e clérigos, para acautelarem possíveis expulsões em massa como aconteceu no Sudão.

Os superiores provinciais dos Combonianos e Combonianas no Sudão do Sul escreveram uma mensagem conjunta para marcar o evento intitulada «Recordando cinquenta anos da expulsão do Sudão do Sul (1964-2014): o caminho longo e tortuoso em direcção a uma nova nação.»

A Ir. Giovanna Sguazza e o P. Daniele Moschetti fazem memória desta «história sagrada» e celebram as maravilhas de Deus que «em situações muito dolorosas foi capaz de fazer algo de bom para a salvação do seu povo.»

Referindo-se à violência que afecta o Sudão do Sul desde Dezembro passado, os líderes da família comboniana no país escrevem: «Acreditamos e rezamos para que o povo sul-sudanês saia desta crise mais forte que nunca, prontos para fazer frente às dificuldades da história e da vida. Acreditamos que o povo do Sudão do Sul vai redescobrir a identidade nacional para construir juntos a sua nação com a ajuda de Deus, ultrapassando o demónio do tribalismo e divisão.»

3 de março de 2014

A HORA DA MULHER


A mulher africana começa a ocupar lugares de destaque na sociedade, apesar de ainda ter de enfrentar uma floresta de dificuldades devido ao preconceito antifeminino. 

A condição da mulher africana registou avanços significativos nas últimas quatro décadas em consequência da urbanização e da escolaridade, dois factores que requalificaram o seu posicionamento social.

No passado, a mulher era mantida fora dos centros de decisão e relegada para um plano inferior apesar de carregar o continente às costas e nos braços, produzindo oitenta por cento dos alimentos que a África come, além de cuidar da família alargada.

São Daniel Comboni intuiu o papel essencial da mulher africana há 150 anos quando escreveu na sua estratégia missionária que a regeneração da África «depende absolutamente» da «sociedade feminina africana».

Hoje, encontram-se mulheres africanas no topo mundial da cultura, artes, negócios, desporto, política, etc.

Há três mulheres a presidir aos destinos de outros tantos países africanos com quadros sociopolíticos complicados: Ellen Johnson Sirleaf, prémio Nobel da Paz, está à frente da Libéria desde 2006, e foi a primeira presidente africana eleita; Joyce Banda assumiu a presidência do Malauí em 2012; Catherine Samba-Panza, advogada, empresária e ex-presidente da câmara de Bangui, foi escolhida em Janeiro para conduzir a República Centro-Africana até às eleições de 2015 numa tentativa para estancar a sangria da guerra civil que consome o país.

Há mais duas mulheres a ocupar posições de relevo internacionais: a gambiana Fatou Bensouda é a procuradora do Tribunal Penal Internacional desde Junho de 2012 e a sul-africana Nkosazana Dlamini-Zuma preside à Comissão da União Africana desde o mesmo ano.

Mais três curiosidades: Ruanda tem o parlamento mundial mais feminino com cerca de dois terços de deputadas depois das eleições de 2013; a Gâmbia teve a primeira presidente do Supremo Tribunal da Justiça desde 2013; e a Mauritânia nomeou a primeira mulher juiz em Janeiro deste ano.

Por seu turno, a União Africana elegeu em Fevereiro último a senegalesa Bineta Diop como enviada especial para as mulheres, paz e segurança para que «as suas vozes possam ser ouvidas mais claramente na construção da paz e na resolução de conflitos». Uma medida crucial já que os homens africanos continuam a monopolizar os assuntos de guerra e paz. Por exemplo, nas negociações para o cessar de hostilidades no Sudão do Sul, que decorreram na capital etíope em Janeiro, havia só duas mulheres entre duas dúzias de delegados.

O Banco Mundial disse num estudo sobre a contribuição das mulheres africanas para o crescimento económico e desenvolvimento na África pós-colonial que desde as independências as mulheres contribuíram cinco vezes mais na economia informal e formal. O estudo realça o papel da educação, que veio relançar o papel da mulher nas actividades económicas formais, sobretudo no sector dos serviços, e reduziu a mortalidade infantil e os índices de natalidade.

Quem conhece a África sabe que apesar dos avanços, a mulher africana continua a enfrentar inúmeros reptos culturais, físicos, económicos, sociais e religiosos. Mulheres jovens e raparigas de 14 países que participaram na Cimeira da União Africana para a agricultura e segurança alimentar (Adis-Abeba, 21 a 31 de Janeiro de 2014) escreveram que o acesso inadequado a uma educação de qualidade (sobretudo nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática), desemprego, altos níveis de violência e discriminação sexual, casamentos precoces e dificuldade no acesso à terra e ao crédito são alguns dos desafios que as frustram.

A União Africana declarou 2010-2020 a década da mulher africana para promover a igualdade do género e o empoderamento das mulheres e consolidar os avanços que o génio feminino tem registado paulatinamente com persistência e sacrifício.