24 de fevereiro de 2014

RCA: VALE A PENA «SOFRER» PELA MISSÃO!


A Élia Gomes, Leiga Missionária Comboniana ou LMC algarvia, relata como a luta pelo poder que está a causar uma «situação desastrosa» com matanças organizadas na República Centro-Africana, também chegou a Mongoumba, o «paraíso» onde vive integrando uma comunidade internacional de leigos que trabalham com os pigmeus. 

Caríssimos LMC, amigos, familiares, conhecidos…

A todos PAZ e BEM!

Aqui estou mais uma vez para vos falar um pouco sobre a situação do país e de como tentamos dar continuidade às nossas atividades apesar do clima de instabilidade em que vivemos. Hoje falo em nome pessoal, sem a Tere, pois não tivemos tempo de escrever em conjunto.

Quando escrevemos em Janeiro, a Teresa e eu, falávamos dos nossos medos e angustias. Hoje, o tema não mudou, mas de espectadores longínquos passamos a espectadores mais próximos das cenas de violência e mesmo «vítimas de ameaças.»

Os protagonistas mudaram, os «rebeldes» Seleka (A Aliança) deram lugar aos «libertadores» Anti-balaka e a grupos de jovens que se autodenominam de autodefesa, estão presentes em todas as aldeias tendo como principal objetivo destruir tudo o que é muçulmano.

Quando a Seleka chegou a Mongoumba nada de grave aconteceu à população, em grande parte devido à intervenção do presidente da câmara (muçulmano). Com a progressiva tomada de posição dos Anti-balaka ou Siriri, os muçulmanos começaram a temer pela sua segurança. Quando as ameaças subiram de tom, as mulheres e as crianças partiram para a vizinha RD Congo, tendo ficado apenas os homens que resistiram algum tempo apesar das ameaças tentando preservar alguns bens. Como não se sentiam em segurança nas suas casas, pediram asilo e dormiram algumas noites na missão, em casa dos missionários, mas também eles partiram tendo deixado à guarda dos padres duas motas e alguns bens pessoais.

Enquanto em Bangui, a capital, os maiores problemas e confrontos foram entre a Seleka e os Anti-balaka, em Mongoumba e noutras aldeias próximas foram e continuam a ser grupos de jovens locais, incontroláveis, que em nome dos Anti-balaka começaram a criar a confusão, destruindo, roubando e queimando tudo o que é muçulmano e ameaçando quem de algum modo ajudou ou protege os poucos bens por eles deixados.

São jovens adultos, pequenos bandidos que sob o efeito de drogas e álcool se deixam manipular por pessoas mais velhas que de algum modo tentam aproveitar a situação de caos para atingir objetivos pessoais. Têm todo o tipo de armas artesanais desde lanças, espadas, machetes a armas de caça.

Formam um grupo bizarro vestido de forma bizarra, uns fardados como verdadeiros militares, outros parecendo saídos de um cortejo carnavalesco. Todos usam e abusam de amuletos não faltando ao conjunto crucifixos e terços, pois quase todos se dizem cristãos!


O que mais nos tocou nesta onda de violência que assolou o nosso pequeno paraíso foi a indiferença e o silêncio quer das autoridades quer da população em geral.

No Domingo a seguir às primeiras pilhagens foi feito um apelo em todas as igrejas, para um momento de oração junto da mesquita com o objetivo de alertar, sensibilizar e evitar a profanação e destruição do templo, mas a participação ficou reduzida a uma vintena de pessoas. Um apelo que caiu no vazio.

Algumas horas mais tarde os martelos começaram a sua ação destruidora, que ninguém tentou evitar. Um espaço que poderia vir a ser aproveitado para outros fins é hoje um montão de destroços.

Da indiferença e silêncio grande parte da população passou a aplaudir as ações das milícias como se de heróis se tratassem. Facto que se verificou quando o grupo de «autodefesa» foi intimar o vice-presidente da câmara a entregar um fugitivo, não muçulmano, vindo de outra localidade, onde era procurado sob a acusação de ter denunciado cristãos às forças da Seleka.

E o mesmo, mas de forma mais discreta quando foram exigir as motas dos muçulmanos escondidas na casa dos padres, onde entraram armados, de forma agressiva e arrogante. As motas, assim como o resto das coisas dos muçulmanos foram entregues na presença do comissário da polícia, (que não tem poder, mas sempre é uma autoridade) com documento de entrega assinado pelos recetores. Apesar da tensão, o padre Jesus conseguiu gerir as coisas de modo que o grupo não aproveitou nada dos bens que no dia seguinte foram entregues aos Anti-balaka sediados a 20 km de Mongoumba.

Não compreendemos esta onda de ódio e violência contra pessoas com quem cresceram e viveram em harmonia numa localidade onde até ao momento nada de mal tinha acontecido, de onde os muçulmanos partiram de forma discreta… não compreendemos este ódio. É verdade que os relatos do que se passou e continua a passar noutras zonas do país influencia de forma negativa toda a gente. Ninguém diz uma palavra a favor dos chadianos sejam da Seleka, da MISCA ou simples civis. Toda a gente fala contra o Chade esquecendo que nem todos os muçulmanos do país são chadianos.

A nossa situação é precária, não somos bem vistos; mesmo tentando agir com a máxima discrição temos tomado algumas medidas impopulares como a suspensão, durante uma semana, de todas as atividades da paróquia (com exceção da missa). Não nos acusaram abertamente de ter protegido os muçulmanos, mas correram rumores que o padre Jesus era visto como pró-chadiano por ter estado vários anos em missões no Chade. Ficamos na expectativa de possíveis ameaças, mas até ao presente nada aconteceu.

Faz algum tempo o silêncio da noite em Mongoumba devia-se ao facto das pessoas saírem para se refugiarem na floresta; hoje também há silêncio, não porque as pessoas partem, mas porque ao cair da noite se recolhem a casa para evitar confrontos numa terra onde não há autoridade e é rara a noite que não se ouvem tiros.

Comparando com o que se tem passado no resto do país e mesmo noutras vilas e aldeias da região a nossa situação continua a ser privilegiada «Deus continua a proteger Mongoumba!»

Mbata, localidade a 40km da nossa, cuja paróquia foi assegurada até Dezembro pelos Missionários Combonianos de Mongoumba, foi parcialmente destruída tendo havido alguns mortos, muçulmanos e não muçulmanos. Hoje, ainda há muitas pessoas a viver na floresta porque não conseguem, por falta de meios, reparar as casas que foram totalmente queimadas.

As situações mais tensas na nossa diocese têm tido lugar nas paróquias de Ngoto e Boda que já foram pilhadas várias vezes, inclusive as missões que da última vez ficaram sem os carros, motas e mesmo alguns móveis. Nessas localidades há conflitos frequentes entre muçulmanos e não muçulmanos sendo o nosso Bispo, D. Rino, o principal mediador entre as duas partes.
As forças francesas e africanas têm tentado em conjunto desarmar e neutralizar os rebeldes da Seleka, que deixaram a capital mas continuam ativos noutras zonas do país. Por outro lado, com a tomada de posição dos «libertadores» Anti-balaka, começou a perseguição aos muçulmanos tendo havido verdadeiros massacres. As milícias Anti-balaka, que se dizem cristãos, são incitados e manipulados por homens com sede do poder. Dom Nzapalainga, arcebispo de Bangui, que desde o início dos conflitos é acompanhado pelo Imã, o líder muçulmano, e por um pastor representante das igrejas protestantes num esforço comum pelo restabelecimento da paz, disse há dias que, em conjunto, pedem que todos os que utilizam e manipulam os jovens sejam responsabilizados a nível nacional e internacional.

No meio de toda esta confusão surgem pequenos sinais de esperança, o Bispo de Bangassou, Dom Aguirre, diz que na sua diocese as milícias de autodefesa foram neutralizadas logo no início pelas comissões de mediação inter-religiosa e que em algumas paróquias iniciou cursos de formação que são frequentados por jovens católicos, protestantes e muçulmanos.
Apesar da instabilidade e tensão em que vivemos temos continuado a trabalhar em todos os projetos de forma normal tentando ser resposta a esta missão a que fomos enviadas. Por vezes é difícil, há momentos de desânimo, mas quem diz que a missão é fácil?

Muitos produtos começam a faltar (sal, açúcar, medicamentos…), os funcionários não recebem os salários e o dinheiro em circulação começa a diminuir, mas… há sempre um mas: as ONGs chegam em força e com as ONGs chegam dinheiro, medicamentos, alimentos, roupas, água potável… e também um emprego bem remunerado mesmo que seja temporário.

Para finalizar apenas tenho a dizer que vale a pena “sofrer” pela missão! É sempre bom sabermos que alguém pensa em nós, que não estamos sós! Continuamos a contar com as vossas orações.

Unidos pela PAZ, um abraço.

Élia Gomes


LMC em Mongoumba, na Rep. Centro-Africana

As forças Seleka, ajudadas por rebeldes chadianos e sudaneses do Darfur, tomaram conta do poder na República Centro-Africana (RCA) em Março do ano passado. Roubavam, destruíam, violavam e matavam cristãos.

Os muçulmanos da RCA viram na Seleka a possibilidade de tomar o poder no país, apesar de representarem somente dez por cento da população. A comunidade internacional interveio para parar a matança contra os cristãos e obrigou o presidente muçulmano a resignar. Os Anti-balaka são a resposta violenta aos Seleka e atacam sobretudo os muçulmanos. Embora pareça uma guerra religiosa, a crise na RCA é uma luta pelo poder político e económica que vai para além das fronteiras do país.

A França e a União Africana enviaram forças para a RCA para por termo à onda de violência, mas a sua missão não é fácil: desarmam os grupos locais mas estes recorrem às machetes.

A situação humanitária é desastrosa e a ação pastoral encontra-se bloqueada pela violência. Mais de 72 mil pessoas foram deslocadas pela violência: a paróquia de Fátima, em Bangui, acolhe três mil refugiados e o postulantado comboniano mais dois mil. Há outros oito mil no seminário diocesano e 40 mil no aeroporto.

A comunidade muçulmana teve que se refugiar no Chade. A instabilidade na RCA ameaça a RD Congo que acolhe uns 40 mil refugiados.


JV

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