15 de dezembro de 2010

RUMO AO SUL



Contam-se dezenas de camiões no largo e espaçoso terreiro do mercado de Bileil nos seus últimos preparativos antes de começar a viagem. É um espectáculo que se tornou repetitivo e lugar comum desde há bem dois meses.

Por entre a azáfama ruidosa da multidão as vozes aumentam de tom, acordando e desacordando preços, no esforço de obter um cantinho para mais uma pessoa ou mais uma peça de mobília que o responsável do camião já não sabe onde meter. Cenário que inclui momentos difíceis também para os indecisos polícias prontos a intervir no caso de, porventura, o crescendo das dicussões resulte em violência.
Encontro-me no meio da grande praça que vou atravessando sem intenções de me deter com alguém. Vou respondendo, aqui e além, aos acenos de adeus de muita gente que eu próprio não pensava me conhecessem. Para as crianças que brincam despreocupdas não acontece nada de extraordinário. Já não assim para os mais velhos que vejo preocupados em ajeitar um lugar mais aconchegado ou menos incómodo possível entre as barras (de ferro) de camas, cadeiras de plástico, tachos e panelas, malas e sacos com vestuário. Espero que, quem viaja desde outras partes do Norte para o Sul do Sudão o faça com mais facilidade e dignidade. Além disso, há muitas famílias que viajarão por via aérea. No entanto, o panorama do mercado no terreiro de Bileil é o normal e comum para quem parte desde o Darfur.
Vozes de crianças desviam o meu olhar na direcção dos últimos veículos da caravana. "Maa sallama, ya abuna, maa salama (adeus, padre, adeus)". Tinham que ser mesmo eles, os pequenos do Valentino. Este sorria também, enquanto acabava de acomodar, no topo do camião, a esposa Lúcia que tinha ao colo o mais pequeno. Ali perto e ao meu redor cruzam-se vozes de súplica e desejos da protecção divina: Natauakkal! Natauakkal! Confiemos (em Deus)! É uma expressão que, natural e espontaneamente, aflora aos lábios dos sudaneses quando se aventuram em tarefas e viagens de excepcional dificuldade e risco.
São pessoas que, na sua grande maioria, não frequentaram a escola; no entanto, são conscientes de ser protagonistas do seu próprio destino: cidadãos da nova nação que querem começar. Domina-os, justamente, um visível e claro sentimento de alegria. Porém, ao mesmo tempo, não escondem a tristeza e, mesmo, a raiva de ter que deixar tudo e partir em situação quase de emergência. Mais ainda, a razão principal de viajar nesta hora e desta forma é só e simplesmente uma: o medo de serem vítimas de represálias por parte do governo do Norte. Este não aceita nem tolera a ideia do divórcio do Sul, quanto mais agora que estão a um passo da proclamação da independência. Mas não há volta atrás. Tudo leva a crer que vai ser este o resultado do referendo que os sulistas levarão a cabo já no próximo dia 9 de Janeiro de 2011.
Será uma nação que nasce a partir deles próprios, com toda a sua pobreza e os seus múltiplos limites. A maior parte dos que se metem a caminho do Sul sabem que terão de recomeçar a vida a partir do nada, na estaca zero. É o caso dos meus amigos Valentino e Lúcia que têm consciência do lugar que deixam e o destino que os espera. Fugitivos da guerra civil que destruia o Sul, foram trazidos ainda de pequeninos para o Darfur, onde (sobre)viveram até hoje. A memória que eles conservam do Sul é de guerra, sofrimento e extrema pobreza.
No alto do gigantesco veículo os quatro filhotes brincam e riem, contentes e satisfeitos com as tâmaras e o pão a acompánha-los aí no seu cantinho. Juntam-se aos pais num aceno de adeus contagiando quantos partilham aquela viatura que, com o resto da caravana, começa a pôr-se em movimento. O barulho simultâneo de tantos motores não me permite distinguir as palavras lançadas ao ar na minha direcção. A imaginação certeira traz-me o eco de volta: “Natauakkal”! Sim, não seja em vão a confiança que põem em Deus durante estes seis longos dias de viagem até Juba.
Dos olhos humedecidos da Lúcia desprende-se uma lágrima que o vento empoeirado imediatamente enxuga, marcando a sua linda tez negra de um sujo esbranquiçado. Lágrima-expressão de alegria? Muito certamente; mas não compete ao vento do deserto traçar a linha de separação entre o doce e o amargo desse nobre sentimento. Antagónicos mas caminham de mãos dadas, abraçam a certeza do agora e a esperança do amanhã e desabrocham na realidade total da pessoa.
Padre Feliz da Costa Martins, desde Nyala, Sul do Darfur

3 comentários:

Anónimo disse...

F-A-N-T-Á-S-T-I-C-O. Acebei de estar no mercado Bileil! Parabéns ao P. Feliz! JN

ElviMejia disse...

É como se estivesse vendo tudo, acompanhando essa movimentação tão necessária do povão. Sofrido, lutador incansável. Ah Joito até quando meu irmão? Até quando as diferenças crescentes entre ricos e pobres? Até quando a eterna procissão dos sem oportunidade, dos sem escolha nessa terra de Deus manipulada pelos poderosos insaciáveis fdp?
Até quando?

Raveli

Sandra disse...

Tambem gostei da narrativa repleta de sentimentos . . . Vale apena viver e partilhar a vida!