25 de abril de 2006

Abrir aspas

O FUTURO DA VIDA
A preocupação com o futuro da vida no planeta Terra foi o assunto central do Fórum inter-religioso popular que, na semana passada, reuniu milhares de pessoas em Vitória, bela cidade do país Basco, no norte da Espanha. Um dos pontos de partida daquela assembleia heterogénea e pluralista foi a afirmação de Vandana Shiva: "Um desafio grande para o planeta Terra é sobreviver ao actual modelo de desenvolvimento social, político e científico que a sociedade ocidental consagrou como o único".
No Brasil, aconteceu em Curitiba a Conferência mundial sobre Biodiversidade. No final, em artigo claro e contundente, escreveu o mestre Washington Novaes: "Qual é a urgência real para as transformações nos nossos modos de viver? (...) Quanto tempo o mundo pode esperar pelo cumprimento de objectivos como os das Metas do Milénio? Serão as grandes convenções internacionais caminho eficiente para assegurarem condições para a vida no planeta e a redução das brutais desigualdades entre seres humanos, países, regiões?" (O Estado de S. Paulo, 31/06/2006).
A revista Science, de 16 de Fevereiro, publicou as descobertas de E. Rignot e P. Kanagaratnan, dois dos maiores geólogos do mundo. Eles mostram que as geleiras do leste da Groenlândia estão se desfazendo a uma velocidade de 38 metros por dia e, portanto, 14 quilómetros por ano. Estão também se derretendo os gelos da Antárctica, do Himalaia, dos Alpes e dos Andes. O resultado disso é um aumento do nível do mar, mudança das correntes marítimas responsáveis pelo clima nos continentes e elevação de quase três graus na temperatura da terra, provocando secas nunca vistas no hemisfério sul e invernos mais rigorosos, no norte.
Fui convidado para falar aos participantes do Fórum inter-religioso de Vitória sobre a espiritualidade ecológica como contribuição ao futuro da Vida. Ali pude constatar que resgatar a sacralidade da Terra não é apenas uma questão teológica e sim, necessidade urgente para defender a vida ameaçada. A solidariedade com a Terra e a natureza é um desafio teológico e espiritual, mas é antes de tudo uma questão de vida. Em um tempo no qual a política internacional está em mãos de governantes como Bush, a economia comandada pelo Banco Mundial, é compreensível que as pessoas se perguntem que contribuição as religiões e tradições espirituais podem oferecer à humanidade neste esforço de transformar o modo de nos relacionarmos com a terra, a água e todos os seres do universo.
Cada dia, aumenta o número de pessoas que tomam consciência de que, para as religiões contribuírem efectivamente na garantir do futuro da vida, é fundamental que sejam humildes e abertas ao diálogo com a ciência actual. Em poucos anos, a ciência passou por um desenvolvimento maior do que toda a evolução científica de vários séculos. As ciências actuais são marcadas pela interdisciplinaridade. A cosmologia procura um paradigma mais holístico na abordagem da natureza e das relações entre o ser humano e o universo. O universo aparece como um complexo conjunto de possibilidades múltiplas e indeterminadas.
As pesquisas mais recentes descobriram que os organismos vivos são sistemas abertos, se mantêm vivos e crescem em vitalidade, na medida em que continuam aprendendo. Aquilo que chamávamos de contágio existe para doenças, mas também como multiplicação da vida, como forma da vida se reproduzir. A imunidade de cada ser é necessária, mas é extremamente relativa e frágil. Um sistema capta do outro os dados da vida, aprendendo o segredo da vitalidade. Os sistemas da vida são interdependentes e relacionáveis. Esta espécie de diálogo entre os seres vivos significa que há uma comunidade da Vida. Pode se dizer: A vida ‘se gosta’ naturalmente. Existe um nexo profundo entre dinâmica da vida e dinâmica do prazer. Por isso, a prazeirosidade é um aspecto importante da aprendizagem e da vida. Isso terá consequências profundas para caminhos de espiritualidade que sempre desconfiam do prazer como pecaminoso e insistem mais na tristeza e na dor do que no direito à alegria. Alguns grupos orientais e as religiões afro e indígenas têm muito a nos ensinar.
No Fórum da Espanha, participei de uma palestra do padre Juan Massia, jesuíta espanhol, especialista em Bioética a quem jornalistas e participantes crivaram de questões sobre clonagem, células-tronco e até sobre o direito das pessoas usarem preservativos para evitar doenças sexuais transmissíveis. Ele insistiu em uma espiritualidade do diálogo, no qual todos se disponham a dialogar sem pretender possuir a verdade. Todos têm direito de ter suas convicções, mas estas se expressam não por princípio de autoridade e sim por argumentos a serem discutidos. O diálogo entre pessoas que pensam diferentemente é como uma continuidade na vida humana deste sistema impresso na natureza de um aprendizado mútuo e permanente. Nossas certezas por mais firmes que sejam nada valem independentemente da relação humana e da solidariedade. A Bíblia já nos diz que a verdade e o amor se abraçam. Se não, não seriam verdade nem amor.
As tradições espirituais podem, sim, nos ensinar a reorganizar nossos valores mais profundos e optar por um estilo de vida que não comprometa o futuro da Terra. A conversão a Deus que as religiões propõem se concretiza também em uma conversão muito profunda e quotidiana ao cuidado solícito com a casa comum e com todos os seres que a habitam. Assim, daremos impulso ao desabrochar das melhores promessas. Então, atravessaremos a noite e firmaremos no mundo uma cultura não violenta, um modo de viver construtivo e sociedades nas quais a compaixão seja um idioma comum. Para além do deserto, sempre há um caminho, uma vida com futuro.
Marcelo Barros, Monge beneditino, in ADITAL

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